domingo, 8 de maio de 2011

Conto - Ana Guimaraens - As Gárgulas - O Guri e a Pamdora

     Quando o caminhão de mudanças entra na Rua do Brejo, a gurizada já está aguardando ansiosa. Desde que o pai do Chico foi transferido e a família teve que se mudar, eles esperam que venha outro menino para ocupar a vaga no meio-campo do time de futebol. Durante seis meses, amargaram a perda do craque, e a cada pessoa que vinha conhecre a casa amarela, de janelas azuis e cerca branca, renovava as suas esperanças.
     - Por que só vêm os adultos para olhar a casa? Por acaso, as cruanças não vão se mudar também? - diz o Guri, desconsolado. Mas agora o caminhão está chegando e a sorte está lançada.
     Parados do outro lado da rua, observam com atenção a movimentação dos carregadores. Primeiro, retiram as caixas de papelão pardo e, à medida que descarregam, começam a aparecer os móveis. Neste momento, o fundo de uma caixa cede quando é levantada do chão, e  uma pilha de livros cai em cascata. Para surpresa de todos, uma bola ofcial de futibol sai quicando preguiçosamente, enquanto o homem atrapalhado não sabe o que fazer. A gurizada vibra, pois verificam que já têm o boleiro de que precisam.
     Um carro estaciona próximo e dele sai uma figura miúda com um boné afundado até os olhos, vestindo um uniforme do Grêmio Futibol Porto Alegrense. A camiseta listrada em azul, preto e branco, as meias até o joelho e o calção folgado deixam as pernas atléticas à mostra. Para em frente a eles e, com um movimento suave, retira o boné, soltan do uma farta cabeleira castanha. Uma constatação assustadora toma conta dos meninos, é uma guria.
     - Oi! Meu nome é pamdora, com eme. Minha mãe escolheu Pámela, por causa de um seriado da TV, e meu pai queria Dora, por causa da sua tia Dorinha. Por isso me batizaram de pámela Dora. Prefiro que chamem de Pamdora, é mais curto e fui eu que inventei...
     E seguiu falando sem parar por mais alguns minutos, sem que os meninos boquiabertos esboçassem qualquer reação. Só silenciou quando fez pergunta fatídica.
     - Vocês têm um time de futibol? Posso jogar?
     - Sim.
     - Não.
     Os meninos se contradizem, pois não sabem como fazer. Eles têm um time, mas certamente não querem que uma menina jogue com eles, a dificuldade é como explicar isto. Como não chegam a uma conclusão, instintivamente olham para o Guri. Mas ele está absorto, observando o homem arrumar os livros dentro da caixa remontada.
     - O Guri o que tu achas, Guri? - perguntaram quase em coro.
     - Claro - respondeu ele, distraído. - Sem problema.
     E, como se acordasse de um transe vê rosto sardento da menina, olhos cor de caramelo, o sorriso de aparelho nos dentes e lábios rosados. Um perfume delicado de água de colônia. Sente um frio na barriga, quando percebe o que fez.
     Mais tarde, em seu quarto, lembra os livros que caíram da caixa. As Aventuras de Tom Sawyer, Hucklerberry Finn, Os Três Mosqueteiros, Moby Dick, Os Doze Trabalhos de Hércules, Meu Pé de Laranja Lima, As Mil e Uma Noites, Oliver Twist, O Menino do Dedo Verde, Os Capitães da Areia. Alguns ele já tinha lido, outros apenas desejando ler. Uma certeza vem à parte para se justificar e, também, para argumentar com o grupo.
     - Quem tem estes livros joga no meu time!

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