sábado, 12 de março de 2011

Conto de Ana Guimaraens - A Ponte

     Henrique precisou afastar-se do grupo que fazia o passeio pelo parque. A natureza chamou-o com extrema urgência e, se ele não chegasse a tempo a um local adequado, arriscava molhar as calças. Olhou a sua volta e nem sinal de uma estrutura que parecesse sanitário. Partiu então para a solução natural, buscar um canto mais remoto para regar as plantas com privacidade. Mas cada vez que pensava encontrar o ambiente ideal, os sons de vozes faziam-no desistir e retomar a procura.
     Quando chegou próximo a uma pequena ponte de pedra, já estava em situação caótica, corroborada pelo som do pequeno riacho borbulhando sobre as pedras do riacho. Atravessou a ponte e deu de cara com uma imensa entrada de que parecia ser um castelo medieval, feito de grandes pedras azul-acinzentadas.
     Estava decidido a prestigiar o muro, quando ouviu vozes aproximando-se. Um homem velho com uma túnica marrom, cercado por um grupo de jovens com túnicas beges. Sem pensar em coisa melhor a fazer o Henrique gritou:
     -- Banheiro!
    O fez um sinal, indicando a direção a tomar. Henrique saiu correndo em direção a uma porta de madeira rústica, no prédio da mesma pedra que os muros externos, e finalmente conseguiu aliviar-se. O local tinha um suave aroma de pinho, não desses industrializados, mas algo tão sutil que parecia ter um pinheiro ali dentro. Notou também que tudo estava extremamente limpo e, ao lavar as mãos, verificou que o sabonete era artesanal, branco com flocos de aveia aparentes e cheiro de coco.
     Voltando ao pátio interno, um grupo o cumprimentou com alegria, como se o aguardasse.
     -- Seja bem-vindo, meu filho. Como te chamas?
     -- Henrique. Desculpe o mau jeito na chegada, estava muito apertado.
     -- Compreendo, muitos chegam aqui assim.
     Sem entender o do que o velho falava, começou a dar uma boa olhada a sua volta. O prédio era enorme, com inúmeras portas e escadas, todas comunicando com o pátio principal, onde estavam. Julgou a princípio tratar-se de um mosteiro, mas observou que alguns dos jovens de túnica bege na verdade eram moças.
     Um sino começou a tocas do alto de uma torre do prédio. Inúmeras pessoas vindas de todas as portas e escadas começaram a saudá-lo, entusiasmadas, usando túnicas de todas as cores. Lentamente, o grupo de jovens que se formou a sua volta foi indo em direção a uma porta dupla. Lá dentro, uma grande mesa rústica, com uma toalha artesanal, estava coberta de iguarias coloniais. Diversos tipos de pães, fiambres, queijo, geleias de frutas e mel.
De cada lado da mesa, longos bancos de madeira, onde os jovens se acotovelavam.
     Henrique comeu com vontade, pois tudo tava delicioso. Serviam-lhe vinho tirado de garrafões revestidos de vime, com um sabor adocicado de uvas brancas. Por conta de sentir alcoolizado, não rejeitou o alojamento que lhe ofereceram para passar a noite.
     Entrou no pequeno quarto, com uma porta e uma única janela, da qual dava para ver apenas árvores altas e as estrelas na noite sem lua. Um catre, uma cadeira e uma cômoda, onde uma túnica igual à dos demais o aguardava. Tirou toda a roupa, enfiou a túnica pela cabeça e deitou-se, ainda incerto se era sonho ou realidade.
     No meio da noite, acordou com uma boa parte do álcool já evaporada. Sentada na cadeira, uma jovem o observava. Quando percebeu que ele estava acordado, retirou a sua túnica e, completamente nua deitou-se ao seu lado.. Henrique ficou lívido, ela passou a acariciá-lo. Ela tinha cheiro de grama fresca cortada. Amaram-se sem ter trocado uma única palavra, pois ela foi embora logo que terminaram. Ele teve certeza de que era sonho e voltou a dormir.
     Na manha seguinte, para sua surpresa ainda estava no mosteiro. Um rapaz sorridente o aguardava no pátio à frente de sua porta.
     -- Está com fome?
     -- Sim.
     -- A primeira refeição está servida, vamos.
     Novamente a mesa do salão estava repleta, porém, em vez de vinho, foram servidos leite e sucos de frutas. Henrique sentou-se e, com apetite, começou a devorar tudo. Do outro lado da mesa, uma jovem de longos cabelos ruivos, com o rosto sardento, os olhos claros e a boca de pitanga madura, sorria para ele. Entendeu tratar-se da moça que o visitou na noite anterior, e baixou a cabeça um pouco constrangido. Ela roçou a sua mão na dele, ao pegar um pedaço de bolo. Ele sentiu arrepiar até o último fio de cabelo, ao reconhecer sua pele.
     -- Está tudo do seu agrado? -- Perguntou o velho, sentado-se ao seu lado.
     -- Tudo delicioso - respondeu ele, evitando olhar na direção da ruiva. Não queria ser mal interpretado.
     -- Ficamos felizes. Faz tempo que não temos visitantes.
     -- Estás brincando -- retrucou Henrique. -- Estamos no meio de um parque, da capital do estado, e ninguém aparece aqui?
     -- Meu filho, nós precisamos conversar -- disse, e levantando-se.
     Henrique levantou-se também, e seguiu o velho até o patio, saindo pelo portão da frente.
     --Vês? --disse o velho. -- Não estamos num parque, e sim nas nuvens.
     Realmente,à volta dos muros uma densa neblina substituía o entorno. O parque, a cidade, tudo tinha desaparecido, sem deixar rastros.
    --Mas tinha uma ponte aqui.
     --Eu sei. mas esqueça o passado, não podes mais voltar, tu fostes escolhido para estar conosco. Agora o teu lugar é aqui, no céu.
     -- Será que eu morri e não percebi? Como isto é possível. Deve ser algum truque.
     Tomando coragem, foi caminhando em linha retal, até chegar ao limite da neblina, e não ter chão para pisar. Desequilibrou-se e, se não foce o braço do velho a segurá-lo, teria despencado.
     -- Não se desespere meu filho. Encare com coragem a sua nova vida.
     Os dias foram se passando, sem que ele desistisse. Não que a vida no céu fosse ruim, mas ele tinha certeza de que precisava voltar. Todo final de tarde, ele ia até o portão principal, na esperança de que as nuvens tivessem desaparecido e ele, finalmente, pudesse voltar para casa.
     Numa destas ocasiões, ouviu a voz da moça ruiva falar com ele.
     -- Tu não estás feliz aqui? Falta-te alguma coisa?
     Ele não soube responder. Neste momento, percebeu que as únicas coisas de que se lembrava de sua vida anterior era estar passeando no parque e ter atravessado uma ponte. Sua família, seus amigos e seu passado tinha se apagado da memória. Não sabia mais quem era nem de onde vinha, lembrava apenas de seu nome, Henrique. O último homem que veio do exterior, pois ninguém mais apareceu.
     Os anos se passaram, e ele, aos poucos, foi se adaptando à nova vida, simples e fragal. Aprendeu o ofício de cinzelador, tornando-se útil à comunidade. Construiu uma casa para si com as próprias mãos. A jovem ruiva casou-se com ele e deu-lhe três crianças adoráveis. A barba cresceu e tornou-se grisalha, mas ele nunca esqueceu daquela ponte, até colocou um banco de pedra ao lado da estrada principal, onde às vezes se punha a divagar, tentando entender o que tinha acontecido à sua vida. No mesmo lugar onde antes tentava voltar para casa.
      Um dia, já bem velho e com a visão um pouco turva, estava ele sentado em seu bando, quando, repentinamente, a neblina dissipou-se um pouco e o ruído de um riacho borbulhante chegou aos seus ouvidos. Levantou-se com alguma dificuldade, apoiando-se na bengala de pau de goiabeira. Lentamente foi caminhando, guiando-se pelo som.
     Mal pode conter a alegria quando viu que novamente a ponte estava lá,exatamente como há cinquenta anos. Tentou apressar o passo, mais as pernas não ajudavam. Quando chegou ao meio do caminho, precisou-se apoiar-se, com os dois braços, na mureta do lado esquerdo. Olhou para baixo, o riacho parou parou por alguns minutos, e ele pôde ver seu rosto velho e cansado no espelho d'água que se formou.
     As lágrimas vieram ao seu rosto, abaixou-se para pegar a bengala que deixara cair, ao apoiar-se. Virou-se e começou a caminhar o mais rápido que podia, usando todas as suas forças, de volta ao Céu, às coisas que realmente importavam para ele. Percebera que só tinha um lugar no mundo para viver, e não queria correr o risco de perdê-lo.

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