sábado, 23 de abril de 2011

Conto - Ana Guimaraens - A Carta

     Com ar de tédio, o Guri vai até a caixa de correspondência, na frente de sua casa. É uma bela manhã de primavera, com pássaros cantando em quase todas as árvores da rua. Pega o jornal, ali depositado para que o cachorro não estraçalhe, algumas contas, um folheto de propaganda e, para sua surpresa, uma carta endereçada a ele.
     Muito curioso, resolve abrir ali mesmo, mas, quando verifica que não há remetente, algo acontece. Sente as mãos se crisparem, a cabeça tontear. De lugar do passado uma lembrança dolorida brota, de forma devastadora, transportando-o no tempo.
     Novamente é um menino que, sem idade suficiente para ir à escola, perambula pela casa em volta da mãe. Entra saltitante na cozinha para pedir biscoito e vê a mãe sentada com uma carta em seu colo e o envelope caído no chão. Ela está diferente, com nariz vermelho e o rosto transtornado.
     - Ta chorando, mamãe? O que houve?
     - Não sei, não tem remetente - responde ela, sem entender a pergunta, enxugando os olhos com a ponta do avental.
     Mais tarde, o jantar é silencioso, bem diferente das conversas e risadas que normalmente animam o ambiente. A canja de galinha fumega, sob o ar pesado da sala. A mãe não fala e as tentativas do pai em estabelecer algum diálogo caem no vazio. O Guri brinca com a comida, distraído.
     À noite, a mãe o coloca para dormir sem lhe contar histórias. E ele fica quieto no escuro, esperando a ouvir uma gritaria. O pai fala baixo, mas a mãe está alterada, falando rápido, num tom tão agudo, que é impossível entender as suas palavras. O Guri sente um medo enorme, coloca o travesseiro sobre a cabeça, desejando estar bem longe dali.
     Já tinha ouvido discussões entre seus pais, mais aquilo é muito pior do que tudo que tenha visto antes. O pavor transforma-se em lágrimas, o menino adormece, num sono agitado repleto de pesadelos. Sonha que os pais tinham morrido ou que foram embora, que ele estava sozinho no mundo.
     Na manha seguinte, tudo volta ao normal. Por muitos anos, o Guri pensou tratar-se de fantasia. Até aquele dia, em frente à caixa de correspondência.
     Como se estivesse em transe, o menino coloca os papéis de lado, rasga a carta em pedacinhos e volta rápido para dentro de casa, sem olhar para trás.
     Do outro lado da, rua, através da vidraça, uma menina pálida, de tranças negras e olhos castanhos amendoados, observa sua cartinha ser destruída.

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